Análise do filme “Raya e o Último Dragão” (2021), da Disney/Pixar, disponível no streaming Disney+.
Contém um pouco de spoilers – mas, de qualquer maneira, esse artigo só vai ser compreendido por quem viu o filme. Se não viu, nem adianta ler.

A história do filme

No filme “Raya e o Último Dragão”, da Disney, somos apresentados à história de um mundo que já foi unido – sob o nome Kumandra. Esse mundo é invadido por monstros misteriosos (os Drunn) que petrificam todos os seres vivos – até que o mundo é salvo por dragões. O mundo, antes unido em uma só organização, é rachado em diversas comunidades que não se falam e desconfiam uma das outras.

O pai de Raya, chefe da comunidade do Coração e guardião de uma esfera mágica, convoca uma reunião com todas as tribos no intuito de se unirem. Essa reunião dá errado, a esfera mágica é quebrada e os monstros misteriosos retornam novamente – petrificando quase todos os seres humanos de todas as regiões.

Dentro disso, acompanhamos Raya em sua jornada de tentar “despetrificar” a maior parte das pessoas desse mundo desconectado e desconfiado. A questão da “confiança” é central no argumento do filme, e é por meio da confiança que o conjunto de protagonistas conseguem reviver as pessoas petrificadas e afastar os Drunn.

A confiança

As crianças acreditam que podem ser jogadores de futebol, astronautas e bailarinas – às vezes simultaneamente. As crianças acreditam que o mundo é um lugar bom e feliz. E, para uma criança, geralmente é bom e feliz o suficiente – ou pelo menos deveria ser.

A criança confia mais fácil. É natural que a criança se entregue e acredite nas palavras e promessas, sejam das pessoas à sua volta ou seja de sua própria voz interna.

Mas a criança cresce, sua confiança é posta à prova e ela é frustrada.
Frustração faz parte do crescimento. Precisa mesmo de algumas frustrações para ser um adulto minimamente funcional nesse nosso mundo.

O adulto se preocupa em trancar a porta de casa.
Olhar para os dois lados da rua antes de atravessar.
O adulto duvida da boa vontade de estranhos e não acredita em almoço grátis.

A divisão do mundo acontece pelos adultos. Segmentamos tudo: trabalho, família, amigos, conhecidos. Cada segmento tem o seu nível de confiança – e agimos de maneira diferente em cada um desses reinos. E faz parte: não tem como falarmos e agirmos no trabalho do mesmo jeito que agimos com os nossos filhos. Cada comunidade exige uma maneira diferente de agir, de postura, de atenção e até de vestimenta. Cada reino exige um grau diferente de confiança, desconfiança e medo.

Aprendemos, conforme vamos crescendo, que temos que ser mais espertos do que as pessoas que querem nos enganar.
Temos que ser mais fortes.
Não é todo mundo que merece a nossa confiança.

Mas e quando a gente passa a desconfiar de todo mundo? Todos são inimigos, ninguém é nosso amigo de verdade, ninguém nos ama.
E quando desconfiamos do mundo? O nosso primeiro pensamento é sempre de que as coisas não vão dar certo.
E quando desconfiamos de nós mesmos? Achamos que não somos capazes de fazer o que queremos, achamos que somos insuficientes. Achamos que devemos nos conformar com as coisas e estarmos sempre preparados para o pior.

A falta de confiança na gente mesmo e no mundo acaba por nos despedaçar. A gente se desconecta do nosso propósito, das nossas vontades, da nossa missão no mundo, das pessoas à nossa volta. O medo nos despedaça. A gente racha a Kumandra.
E é o medo quem nos deixa irritados, sem paciência. O medo que nos deixa agressivos, sem esperança. O medo que nos faz ver apenas o pior no mundo. E assim a gente justifica as nossas escolhas mornas, o nosso conformismo.

A falta de confiança e o medo nos desconectou da gente mesmo. E então nos paralisa.

O medo nos faz virar estátuas em vida. Imóveis. Seguindo dia após dia uma vida automática, sem sentido, com algum alívio aqui e ali por meio de prazeres rápidos e entretenimento.
A gente confunde recreação com felicidade. A gente confunde passatempos com propósito de vida.

A coragem da entrega

“O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” (Guimarães Rosa)

Como deixar de ser estátua e voltar à vida? Como enfrentar o medo e trazer sentido à vida?
Como unir novamente Kumandra? Como nos conectar novamente com nosso propósito?

Raya juntou todas as peças da jóia do dragão. Teve um trabalho enorme para juntar tudo isso.
A gente tem um trabalho enorme nos desenvolvendo, também. É muito estudo, muita meditação sobre a nossa vida, muita conversa. Muita terapia!

Mas juntar todas as peças da jóia do dragão não resolveu tudo magicamente.
Assim como não resolve, sozinho, a gente estudar toda a história do mundo e da humanidade, ler todos os mais importantes livros e conversar com os mais admiráveis gurus. São passos importantes, mas não resolve sozinho.

Raya precisou abrir mão do controle e confiar em Namaari. Mesmo que alguns anos antes foi Namaari que despertou a desconfiança de Raya.
E como a gente pode confiar em um mundo que nos amedrontou tanto no passado? É difícil, mesmo. Pode nem sequer fazer sentido isso.

Mas ninguém, em sã consciência e sendo honesto, vai falar que é fácil.

Por isso a gente pensa em tantas alternativas. Por isso a gente dá voltas e voltas, tenta de tudo o quanto é jeito se acomodar e nos sentirmos felizes na vida morna e automática.

Porque dar um salto de fé e se abrir para o mundo exige muita confiança e é realmente muito difícil.

Por mais que seja o único caminho.

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