Análise do filme “Soul” (2020), da Disney/Pixar, disponível no streaming Disney+.
Contém um pouco de spoilers – mas, de qualquer maneira, esse artigo só vai ser compreendido por quem viu o filme. Se não viu, nem adianta ler.

“Aquele que tem um PORQUÊ para viver pode suportar quase qualquer COMO”.
Nietszche

A gente faz os nossos planos, a gente tem os nossos sonhos. Alguns deles nunca se completam. E alguns até se completam, mas a gente acaba se cansando deles, ou muda um pouco. E tudo bem.

Algumas dessas nossas vontades podem ser tão fortes que dão uma certa sensação de que fazem parte da nossa própria estrutura. “Eu sou médica!”. “Eu sou músico!”. “Eu sou empreendedora!”. A gente nos define a partir dessas vontades, dessas estruturas.
E tá certo também que a pessoa é mais saudável quando tem várias estruturas. Quando, além de advogada, também é mãe, esposa, atleta de crossfit e gosta de cozinhar. Se a pessoa tiver só uma estrutura, e se essa estrutura ruir – como um músico que perde o movimento das mãos – a gente fica com a sensação de que a vida acabou. Muito sofrido, mas até aí faz parte da vida, se a pessoa tiver disposição consegue enxergar mais coisas.

Nós temos uma capacidade muito grande de simbolização.

O ser humano não é um animal racional. Nós temos a razão, também, e ela tem a sua importância para a nossa vida, uma importância muito grande por sinal. Mas o ser humano é essencialmente um animal simbólico. A gente funciona por símbolos que carregam um grande significado.

Veja por exemplo a questão do mundo virtual. Nós simbolizamos, pelo virtual, a presença do outro. A gente consegue sentir a presença do outro, mesmo vendo apenas imagens formadas por pontinhos de luz, transmitidas sem fio e a uma distância que às vezes mal conseguimos imaginar. Pessoas a centenas, milhares de quilômetros de distância, e nos sentimos próximos. O abraço virtual pode não ser tão bom quanto o real, mas quem vai ter a coragem de falar que ele não existe?

Veja os livros: nós simbolizamos a história do outro. A gente lê livros de pessoas que já morreram, e nos sentimos intimamente conectados com aquela pessoa. Nos sentimos conectados com esses autores de centenas de anos de distância, e mais do que muitas das pessoas que convivemos presencialmente dia após dia, pessoas que damos bom dia e que às vezes chegamos inclusive a cumprimentar com um aperto de mãos. Ou um beijinho no rosto – olha que coisa mais íntima! Mas a conexão com alguém do passado, uma pessoa que sequer vimos uma foto real, pode ser muito mais forte.

Enfim. A gente pega um sentimento muito forte dentro da gente, pega esse símbolo, e coloca esse símbolo em uma atividade externa. E quanto mais a gente faz essa atividade, mais ela significa pra gente. Se a força da vontade se mantiver acesa por tempo o suficiente, vira mais uma estrutura.

E qual é essa força? Qual é essa força desse sentimento, que força é essa que é capaz de levar a gente a qualquer lugar do mundo, fora ou dentro? Gente do céu, é tão simples que parece mentira. Essa força fenomenal, que é a grande força motriz do ser humano, é o afeto.
A razão faz com que a gente estruture o caminho e cumpra os planejamentos.

Mas é o afeto que dá valor às coisas. É o gostar. É aquele brilho no olho que sentimos, aquele calor no peito, aquela emoção. É isso que dá valor à vida.

É isso que nos conecta à vida.

É o afeto que conectou 22 e Joe Gardner.
É o afeto que conectou 22 à vida. Antes ela não se sentia conectada, não tinha afeto, só raciocinava a vida.

Pois veja. Se for olhar do ponto de vista puramente racional, a vida não presta mesmo, não. Isso é óbvio. Nós todos, sem exceção, vamos sentir dores fenomenais durante a vida, vamos todos nos apegar a algo e depois perder, vamos ver nosso corpo envelhecer e ficar mais fraco – e isso se tivermos essa sorte. A vida é uma história, do ponto de vista racional, de decrepitude. A gente nasce, e dali pra frente só perde. Perdemos mãe, perdemos saúde, perdemos vida. O que a gente ganha, do ponto de vista racional, também não fecha a conta: a gente trabalha, ganha dinheiro, ganha ansiedade, ganha medo. Claro que não vale a pena.
Quem vai falar pra 22 que isso tá errado? Se ela não tem conexão com a vida, se não tem afeto, ela tá certíssima.

Mas aí ela vê a vida. Ela se conecta. Se conecta com o prazer da comida, com as luzes, com o prazer de sentir a semente na mão, se conecta com Joe, se conecta com a menina daquele instrumento de sopro que não sei o nome. Aí a vida faz sentido, e nossa senhora, quando a gente entra nessa esfera do valor então a conta não só fecha como passa muito. Começa a valer a pena demais. A conexão com o olhar de nossos entes queridos, o cheiro do jantar de almoço em família, o toque da pele de nossos filhos, o primeiro beijo tímido daquela que vai ser o amor da sua vida por muitos e muitos anos.

As ideias de sentido da vida, vocação, propósito, isso leva a diversas linhas filosóficas diferentes e cada uma com uma resposta, às vezes de cunho religioso, outras de cunho mais realista, ou dentro de uma ideia de absurdo. Tem de tudo. E muitas coisas muito boas.

Mas reduzindo o conceito, trazendo o conceito para a sua essência primordial e de maneira prática, a resposta é bem óbvia. As divergências surgem quando a gente coloca mais camadas, mas quando a gente vai bem no cerne, a resposta é óbvia.
O sentido da vida é a morte – sentido como direção, como fluxo matemático. Essa é a direção da nossa vida.
E o objetivo da vida é opcional. Não precisamos ter nenhum objetivo, mas a gente pede, como ser humano, a sensação de nos sentirmos completos. E dentro dessa ideia, o objetivo da vida é bem claro e nítido. Se quisermos ter uma sensação de completude, o objetivo da vida é a ligação. A ligação com o outro, com o mundo, e com a gente mesmo.

Repetindo: o sentido da vida é a morte. E o objetivo da vida é a conexão.

Interessante que para que as almas possam vir à terra, no filme, elas já tem que ter percebido o objetivo da vida para elas se sentirem completas. Elas tem que sentir essa conexão. E olha que ideia bonita: as almas já nascem completas. A gente só tem que viver.

A gente já nasce completo. Dali pra frente é só viver. Essa ideia tem uma força muito grande. Traz um símbolo muito forte de que somos completos. A razão explica isso? Ajuda. Nossa razão pode trazer o pensamento para elaborar essas ideias. Mas a beleza dessa ideia está na razão? Claro que não.

A gente já nasce completo. E dali pra frente, crescemos. Olha como essa ideia é poderosa: quando nos sentirmos perdidos durante as grandes noites escuras da vida, o que devemos fazer é tirar todo o excesso que colocamos em cima da gente mesmo. Tirar as expectativas irreais, tirar os planos das outras pessoas para a gente, tirar as toxicidades e venenos, tirar as ideias mesquinhas. Só tem que raspar, limpar e polir a panela que nós somos: e embaixo disso tudo, estará o reflexo da essência de cada um de nós: uma alma que sente o que vive. Uma alma completa.

3 comentários em ““Soul” – o propósito da alma”

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